Opaca e dormente

O meu interior está opaco com secreção; eu não escuto os meus sons, eu não sinto o gosto nem o cheiro de nada. Contato reduzido ao mínimo e contato social feito com máquinas. Muito tempo nas mãos, muito pouca energia e nenhum objetivo.

Espera-se o tempo passar, desperdiça-se vida. “Até daqui a duas semanas”, disse ele. Tem sempre um “ele”. Jurei que não ficaria sentada esperando o tempo passar até que batesse a hora e o dia, mas é exatamente isso o que estou fazendo. Minto; estou doente, preciso de repouso. Minto, fiquei doente porque fugi do compromisso. Minto: cheguei doente porque tive prazer demais. Huh? Faz sentido isso? Um choro tão contido e tão escondido que transformou-se em catarro, é uma das coisas que diz o meu livro “A Doença como Símbolo”. Agora fico expurgando, vendo a que horas chego à conclusão miraculosa de vida que vai fazer com que a secreção vá embora. Sento no sol, inspiro, peço cura. Levanto para cuspir. Vendo a que horas vai dar o estalo dessa luz que vai surgir de dentro e me dizer o que fazer. De dia em dia, passaram-se quatro anos. Ouvindo o álbum todo de Warpaint, “Fool” sem parar, pela terceira vez.

Acho que fiquei triste por ter abandonado a ideia do mestrado esse ano. Ainda não me decidi mesmo, mas que coisa! Será que estou fugindo do próximo passo? Por que as minhas decisões são tão opacas e não consigo ter certeza nem de um caminho, nem do outro? Sair de Berlim seria ótimo, quero já há tanto tempo… Vou para qualquer outro lugar, menos de volta para o Rio.

Mas e o amor? Está aqui nessa bagunça, em algum lugar. Assim como ele está indisponível para mim hoje, estou indisponível para o amor neste momento. Estou aberta à experiências, estou aberta a ser conquistada e invadida por esse amor que está pequenino, tímido, é um fetinho. E eu tenho que dar amor pra esse antes de qualquer outro. E, sempre que há um outro eu me confundo… Já estou perdida dentro de casa com as minhas próprias coisas, não sei por onde começar a me escrever e tenho todas as palavras espalhadas pelo chão por cima das roupas, pedaços de papel, canecas vazias, lenços de papeis e pelo de gato.

Paradoxalmente, “Solange estou aberta” apesar de ter passado essa semana fechada em um cubículo. Se o meu cubículo é insuportável para mim, a ideia de viver dentro de um cubículo alheio é agressiva. Rejeito. Liberdade.

you better learn your lesson yourself… nobody ever has to find out what’s in my mind tonight… nobody in my mind… nobody in my mind” – Undertow, Warpaint.

O ponto mais baixo da semana seguinte da semana com o ponto mais alto, em Idanha-a-Nova.

Prisões e prisioneiros

amarras

Estou assistindo Orange is the New Black e, como todos os seriados de televisão ou filmes costumam fazer comigo, sou transportada para outras realidades, absorvendo questões e pensando sobre coisas que normalmente eu não pensaria sem ter essa influência externa. Desse modo, qualquer programinha furreco de televisão me leva a questões mais profundas sobre o viver. Tudo no mundo me leva à reflexão. Mas essa série não é uma das furrecas que eu assisto.

Essa série quebra um monte de tabus e explora hipocrisias do sistema em que vivemos, o lado horrível das chantagens e escambos, da tortura emocional e psicológica que sofrem as pessoas encarceradas. Não são animais (eu não gosto dessa analogia porque não acho que os animais sejam seres inferiores nem mereçam um tratamento assim) e não são apenas criminosos, são seres humanos. A regra do mais forte, do mais poderoso, daquele que tem mais contatos, daquele que pode dobrar as leis para proveito próprio e tendo aval jurídico para fazê-lo impera. É o lar doce lar dos sem escrúpulo, dos hipócritas, dos malditos.

A questão da liberdade é, eu diria, a minha questão alfa. Liberdade é a palavra que eu mais amo e a que eu mais trabalho. É a palavra em que eu mais acredito. E é uma das palavras mais mal-empregadas e mais distorcidas que existe em todas as línguas.

Por que precisamos viver em uma sociedade que precise de prisões? Porque as pessoas não sabem onde termina o seu espaço e começa o dos outros; porque as pessoas acham que podem inferir as próprias vontades às vontades alheias, roubá-los de seus direitos, acham que liberdade é escapar de cumprir os seus deveres, enfim… Muitos enganos.

Mas o que eu queria mesmo destacar é que prisioneiro não é só aquele que foi encarcerado. Prisioneiro é todo aquele que precisa viver de acordo com regras alheias às suas próprias e opostas à sua Vontade. (Essa Vontade tem letra maiúscula porque é um conceito desenvolvido por Aleister Crowley, de acordo com a Lei de Thelema de 1904 que explica o funcionamento do universo, e todos seres como estrelas únicas e eternas, que refletem a verdade única e absoluta que é “deus”, com uma missão a ser cumprida em vida. – Essa é a minha interpretação pessoal, resumida a grosso modo.)

A minha liberdade não pode inferir dor ao outro. A minha liberdade não pode roubar a liberdade do outro. A minha liberdade não pode ser tomada por outro e qualquer um que tente eu tenho liberdade para impedi-lo. Quem acredita em liberdade deixa de fazer muitas coisas.

E todo aquele que está preso aos seus vícios de pensamentos, a vícios de quaisquer tipo, todo aquele que não consegue ser dono se si mesmo, que não consegue ter autonomia, consciência e controle sobre si mesmo e sobre as suas ações também é um prisioneiro, mesmo que esteja fora de uma cela. É por isso que a espiritualidade é importante. Procurar crenças espirituais é uma forma de compreender e de se questionar sobre o próprio espaço, o espaço que o corpo físico ocupa e o espaço interno ao qual só nós temos acesso. É só a partir desse encontro que podemos nos libertar das amarras invisíveis que nos impedem de ser felizes e inteiros com o mundo. E qualquer crença que imponha barreiras para essa felicidade criando amarras que não pertencem a você estão fazendo de você um prisioneiro. Liberte-se delas.

(Escutando Aes Dana, álbum Perimeters)

Processos evolutivos e por que as pessoas têm filhos

Os processos são evolutivos, cheios de mudanças, altos e baixos. O momento “agora” é esse, como descrevo a seguir. Pode ser que amanhã eu seja apresentada a uma outra forma de enxergar a situação por um ângulo completamente diferente e seja suficiente para me fazer mudar de ideia. Estou aberta a mudar de ponto de vista, principalmente quando os processos partem de dentro, do meu próprio aprendizado e observações. Não sinto que preciso fixar as minhas convicções só para satisfazer a um mundo que reage muito mal a mudanças ou para contrair menos críticas das pessoas que me rodeiam. Hoje estou assim e isso é fruto dos meus momentos e experiências presentes. Se amanhã eu mudar de opinião, estarei imersa em um contexto diferente, aprendendo coisas novas e ampliando os horizontes. As minhas contradições são um pouco mais sofisticadas do que ocupar pontos opostos entre dois extremos, como “odeio criança/ amo criança”. Eu amo criança; eu só não entendo, nesse momento, por que as pessoas têm filhos. (“Ontem” eu entendia isso perfeitamente porque estava em um relacionamento estável, apesar de monótono e totalmente insatisfatório, e o meu corpo estava com o despertador biológico ligado.)

Acho que elas pensam “é, seria legal” e não fazem nada para não acontecer, então simplesmente acontece e elas têm que lidar. Uma criança eu até entendo, mas… Quatro?! Hoje, na creche, um menino de quem eu gosto muito e com quem eu costumo brincar teve um acesso de agressividade sem motivo aparente. Ele ficou chateado que um jogo não correu como ele queria e não aceitou conversa. Mordeu a bola de espuma, me arranhou, me deu socos, me riscou com giz, jogou giz em mim, quis me acertar com as cadeiras de plástico… Não teve diálogo. Falei mil vezes que não achava engraçado, que não era um jogo, que eu não estava contente, que aquilo não era legal, mas a minha vontade era encher a bunda dele de palmadas. Quando o discurso e a conversa não surtem efeito, sabe? E eu não fiz nada, não impliquei com ele, nada. Eu não sei de onde veio isso. O que eu fiz para engatilhar a frustração desse menino? A mãe dele também não conseguiu deter a fúria. Ele quase derrubou o carrinho do bebê recém nascido. Saí de lá como todos os dias: suada, babada, grudenta, com areia por toda a roupa, melecada e ainda com a moral lá embaixo.

Não acho que seja o trabalho ideal para mim. Eu não me sinto fazendo bem a essas crianças, eu não me sinto envolvida em um projeto que mude a vida dessas mães ou das famílias. Eu não acho que seja um tempo produtivo. Se eu tivesse que fazer esse trampo um mês acho que eu ia ficar bastante infeliz. Aí penso nisso e logo solto gargalhadas de absurdidade. Imagina ser mãe! E isso é porque, no geral, o meu discurso rima com os meus pensamentos que são “adoro criança!”. Elas lá na casa delas e eu aqui. Super brinco, sorrio, me dedico por alguns minutos ou horas. Quando eu canso, quero distância e quero ter o meu tempo e espaço, mas com criança não existe isso. Não sei como essas mães fazem e, pelo o que eu vejo elas não fazem. Não tem como fazer. Não dá tempo, não sobra energia. Elas estão ocupadas com o básico da vida delas e dos bebês.

Foi daí que pensei que os sentimentos de abandono e rejeição são traumas do nosso tempo produzidos pelo nosso modo de vida, e instalados durante a infância. Não são os péssimos pais que temos, é todo um sistema. O sistema capitalista, por exemplo, que faz com que os pais trabalhem e passem o dia for a, e a criança tenha que ficar em uma creche, com pessoas e outras crianças estranhas, desenvolvendo uma adaptação tosca e artificial (cada dia aumenta o tempo de distância entre pais e filhos um pouquinho).

Aí eu lembro que era a minha avó que tinha que me deixar no jardim de infância e ela não conseguia me deixar lá chorando como eu chorava (detestando). Ela disse que eu chorava muito. Eu não lembro de chorar, eu não lembro o que eu sentia. Eu não sei se foi uma coisa boa ou ruim pra mim ela ter me levado de volta pra casa. Eu posso ter crescido acreditando que eu tinha uma proteção que era irreal. Ou eu posso ter crescido acreditando (sem saber, ainda por cima) que eu ia ser abandonada, deixada lá e depois ela me levava pra casa e era como se dissesse “brincadeirinha!”. Eu não sei como isso ficou registrado no meu emocional e é injusto que crianças desde o primeiro dia de vida, sem nenhum filtro tenham também emoções que ficam lá, escondidas… Atuando depois na vida adulta sem elas terem controle ou consciência. Mas eu sei que sofro de um registro de rejeição e abandono que eu não sei de onde vêm.

Fico imaginando… Eu não sangrei quando perdi a virgindade. E se algum pervertido da família resolveu “me fazer um favor” enfiando o dedo na minha vagina de bebê para que não fosse tão ruim pra mim mais tarde, me roubando o direito de lidar com o meu próprio corpo de forma consciente, quando fosse o momento propício? Isso pode até não ter acontecido comigo, mas está certamente registrado na memória de milhares de bebês meninas. Antes de eu transar, ninguém nunca me disse “o seu hímen é complacente!”. Eu nem sei se há formas de ver isso… Sabem que existem, mas é como se fossem um mito. E esse tipo de decisão de alguém que tinha acesso à intimidade do bebê fica pra sempre apagada da memória da pessoa, mas não que cause menos danos. Você sente coisas que não sabe de onde vêm e tem paranóias, sensações que não sabe quais são a origem.

Então há milhões, bilhões de adultos no mundo que não sabem se tiveram uma vida de bebê emocionalmente segura, nutritiva, cheia de amor e atenção. E, a julgar pela mentalidade dos adultos e analisando a história do mundo, eu me pergunto… Em algum momento da humanidade produzimos bebês de forma consciente para gerar seres saudáveis, inteiros? Todos os espermatozóides vencedores estão ou estiveram ativos no mundo em suas determinadas épocas e foram lançados em uma sociedade selvagem e fria – as pessoas que defendem se eles vivem ou morrem não defendem indivíduos e almas, defendem ideias. Somos todos sobreviventes, mas a que preço?

Momentos de transformação II

Quando o mar está revolto e o mergulhador por acaso foi arrastado pela correnteza e não consegue respirar porque a cada vez que ele sobe à superfície, uma nova onda vem e quebra em cima dele, que perguntas se faz – quando você é ao mesmo tempo mergulhador na água e observador na praia?

Se a luta é pela vida e pela afirmação da vida, não há tempo de pensar. O pensamento pode apenas decidir se você continua lutando ou se desiste. Se o pensamento, apesar de todo o desespero pensar “acalme-se que você vai conseguir” e aproveita todas as possibilidades de puxar o mínimo de ar que for, talvez você consiga mesmo. Mas tem um momento de dúvida e esse é crucial para determinar o fim.

Os momentos de transformação, que são tantos na minha vida que eu nem sei ao certo quando é que não estou neles, a minha consciência funciona como o observador da praia ligado ao mergulhador. Pensa só uma coisa: resista. Por mais que o cansaço me faça querer desistir e deixar levar, talvez o orgulho salve a vida do mergulho. Não posso me deixar levar e morrer na praia. Então o esforço que faço é contra forças da natureza – da minha própria?

afogamento

A sua consciência está em suspenso, mas você sabe que está em uma posição desfavorável e que pode não resistir à insistência da água. O ideal de quem respira oxigênio é poder respirar de novo e sempre. Esse é o meu ideal também, mas não o mínimo ar que eu puder puxar e sim, encher os pulmões com o ar mais puro do meio da floresta.

Espera-se pelo milagre de o mar acalmar e o mergulhador ainda ter energia de nadar até à beira para descansar e recuperar as energias? Esses milagres muitas vezes acontecem… Mas não dá para prever quando isso vai acontecer. E os momentos de calmaria, estou tão ocupada reparando o corpo e restaurando a energia dos momentos de tormenta que não tenho tempo para dedicar a mais nada.

Fico tentando voltar ao passado para saber o ponto exato que eu cruzei uma situação relativamente segura à beira mar para o meio das ondas tumultuosas. Ultrapassei, em algum momento, uma linha ligada a um ponto que tenha sido impossível voltar a superfície para respirar e, desde então, vivo no mar. Será que há um ponto de “no-return”? E que ponto foi esse, exatamente? Quando foi a primeira vez que eu quebrei que ficou impossível de consertar?

Em meio a tantos banhos de água salgada a alma, ao menos, está lavada. Eu que digo não acreditar em sacrifícios, cometo vários.

escutando: Wild (Poe, álbum Haunted)

Momentos de transformação I

Hoje é dia de lua nova, uma lua nova aguardada. É uma lua nova em câncer, seja lá o que isso significar na sua perspectiva e na da astrologia ocidental. A lua nova em câncer é, na astrologia Védica uma lua nova em gêmeos. Em primeiro lugar, isso já mudaria tudo de figura. Lua nova em gêmeos cai na minha casa 8. Em câncer, na casa 9 – são dois setores da minha vida bem diferentes.

Mas eu li sobre a lua nova hoje, me inspirei e resolvi fazer um banimento. Fim de mês, namoro terminado recentemente, novo trabalho; sentei para meditar, escrevi um parágrafo o qual recitei em voz alta como se fosse uma invocação para a lua nova. Não fiz nada além disso, não chamei divindades, anjos, nada. Nem escrevi papelzinho para amarrar em nenhuma pedra (as minhas estavam tão empoeiradas, fiquei desencorajada).

Resolvi que os rituais precisam ser feitos dentro do meu templo que é na minha mente e coração, em uníssono. Eu tenho preguiça de montar altar, vestir robe, arrumar a sala. Prefiro fechar os olhos apenas.

Antes de ir dormir, vi que um inseto invasor entrou no meu quarto. Era tipo uma mistura entre mosquito borrachudo e libélula. O Corpo era do tamanho do de um borrachudo, mas o formato dele e das asas e a cor vermelha eram de libélula. Ela era inteligente também. Quando abri a janela do meu quarto para ver se ela voava para fora entrou, na mesma hora, uma mariposa sem plano de voo quarto adentro.

E se tem uma coisa que eu dispenso na natureza são essas coisas voadoras que você não consegue prever pra onde elas vão, que voam a esmo e sempre em cima de você. Qualquer coisa que voe assim me dá muito nervoso. Então, fiquei no quarto apenas até conseguir fechar a janela. Depois, fui pro corredor e fechei a porta. Fiquei pensando no que fazer. “Já sei! Estrela”. Coloquei Estrela pra dentro e fechei a porta novamente. Eu sei que gata eu tenho, mas não podia garantir que a mariposa sairia viva. Eu gostaria! Tentei retirá-la do meu quarto mas como ela resistiu, chamei a minha arma secreta contra insetos voadores. Estrela brincou um pouco com ela até dar uma zoada na bicha, que ficou meio tonta. Nessa hora, consegui capturá-la. E minha gata é tão tranquila que nem danificou as asas da mariposa.

Coloquei ela pra fora. Depois, vez da libélula mosquita. Essa estava olhando pra mim, tenho certeza. Quando cheguei perto, ela saiu voando de medo. Da segunda vez eu conversei com ela. “Bichinha, eu quero capturar você momentaneamente, só pra colocar você lá fora. Se você ficar aqui, vai acabar virando brinquedo de gato”. E não é que funcionou? Ela não voou e deixou que eu a capturasse. Coloquei ela pra fora também. A danada da mariposa ficou grudada no vidro da janela do quarto a-noite-inteira. Um dia me disseram que mariposas dentro de casa traziam mau agouro. Fiz um outro banimento só pra ter certeza, mas ela continuou lá. Olhei na internet, no dicionário de símbolos o que significava mariposa, e lá dizia: transformação. Também, a letra grega “Psi” que dà origem à Psicologia é representada por uma mariposa. Lua nova são novos caminhos. Eu que procuro um novo caminho, tenho um psi voador entrando no meu quarto que não desgruda de jeito nenhum. Até pensei em virar psicóloga. Quase nunca entra inseto aqui. Nessa noite simbólica, entraram dois… Precisa ter alguma moral. Eu me senti a duquesa das histórias da Alice que sempre procura uma moral em tudo. Já eu, procuro sempre significado.

estrela mariposa

Só empresto a minha voz

 

Nós sabemos que somos sozinhos, que ninguém pode caminhar por nós. Mesmo assim, insisto em me apoiar em previsões, leituras de tarô, aspectos astrológicos, livros de magia e conversas com amigos. Era o que eu mais gostava de fazer. Era ótimo ter vários amigos perturbados: sentávamos todos ao redor dos livros e dos jogos, e passávamos horas conversando quando eu ia para São Paulo, todo ano em julho. Mas não fazíamos só isso. Aonde estivermos, somos leais uns aos outros. Porque são pessoas que escutam e ecoam a minha voz, entendem a minha língua.

Eu poderia e gostaria de dizer que estou super feliz nesse momento, que foi só me mudar para Berlim que a minha vida começou a ir pra frente, que todas as minhas escolhas foram felizes e que estou arrasando montes, mas eu não sei mentir. Tanta gente que eu gostaria que visse o meu sucesso, que eu gostaria de trazer junto, que eu gostaria de nem precisar dizer “estou mesmo bem!” já que seria óbvio, perceptível.

Se eu viver uma vida feliz, quem vai escrever os meus textos? Mas se eu aprender a viver uma vida feliz, não poderia escrever para ensinar como cheguei lá? Tanta gente escreve sobre tanta coisa… Tanta gente canta sobre tanta coisa e tanta gente parece que sai de uma fábrica de vozes iguais! A singularidade não pode ser dada pela roupa que você veste, ela vem de dentro. A singularidade da voz não está na capa do livro. Por isso escrevo escondida. Fujo da fábrica da padronização da minha voz. Também não a vendo, só empresto e temporariamente.

Tem algumas pessoas com as quais a comunicação é possível mas, mesmo com estas, não é sempre. A gente precisa se desvencilhar e ir viver a própria vida, individualmente, para coletar novas histórias, aprendizados a compartilhar. Não dá para viver em grupo, não para mim. Mas quando a voz chama, “é hora de conectar-se”, é assim que acontece. A voz que eu tenho que um dia sonhei que transformava uma chuva em eletricidade, quando o som da minha voz atravessava os pingos dágua ainda está aqui. E, às vezes, eu a escuto.

010320081245

 

Água, lua, pedra, saturno.

Todas as moléculas de água no seu estado líquido possuem o mesmo tamanho? Assim, todas as gotas do oceano seriam exatamente idênticas em importância e aparência? Faz algum sentido isolar as gotas de um oceano para serem gotas desgarradas do seu universo? Que influência tem a lua em uma molécula de água isolada no dente de uma foca?

Somos tão pequenos ou sequer menores, em arrogância e presunção, que uma gota no oceano do tempo infinito e do universo desconhecido. Como ousamos nos desgarrar uns dos outros fingindo que somos maiores, mais importantes? Se as únicas moléculas que crescem e racham são aquelas que foram congeladas…

Eu li “Maybe the journey isn’t so much about becoming anything. Maybe it’s about un-becoming everything that isn’t really you so you can be who you were meant to be in the first place”. (Talvez a jornada não seja tanto sobre tornar-se alguém. Talvez, seja sobre deixar de tornar-se tudo aquilo que não seja realmente você para tornar-se quem se deveria ser em primeiro lugar”.)

O melhor ensinamento saturnino… O estraçalhar da personalidade para a libertação total das possibilidades infinitas sem o apego. Depois de ter tudo o que era conhecido estraçalhado, não é a morte que vem a seguir mas sim o renascimento. É o diamante interno encontrado depois da auto mineração. garimpando os contornos geográficos das montanhas do ser, invadindo a pedreira do coração, buscando pelo sentido brilhante da alma escondido no interior do próprio mundo, despojando os espaços condensados de toda a terra em excesso, de todo o peso em excesso, de toda a escuridão, limpando o terreno… Aprendendo a ser who you are meant to be.

Pureza que redime

Ô chuva abençoada!” pensei, e logo veio um trovão. “Agradeço, deuses, por terem ouvido as minhas preces. O mundo está começando a se abrir para mim”. Eu não sei se Indra, sendo o Rei dos Deuses e um deus de fogo, sendo o deus regente da estrela do meu ascendente teria o poder dos trovões. Mas se tiver, está me deixando encabulada.

Seria mesmo uma pena se tudo isso fosse destruído, ou se apenas o que fosse destruído fosse o observador. Eu sentiria uma falta imensa de olhar a chuva, sentir o seu frescor, o cheiro do mato verde coberto por ela se eu não existisse mais. Se, comigo, toda a humanidade também deixasse de existir. Dessas coisas eu sentiria tanta falta! Diversas vezes penso que abriria mão da minha própria vida para que a vida no planeta voltasse a ter equanimidade mas, se isso de fato acontecesse, estaria muito além da ação de um mártir já que a causa não seria nomeada e nem conhecida, e sim um pacto feito silenciosamente entre mim e todos os deuses. Também seria muito além de um suicídio, pois toda a humanidade deixaria de existir comigo, mas não pelas minhas mãos. As minhas mãos foram doadas a serviço do bem. As minhas mãos vão, em sentido literário, ficar esfoladas de tanto tentar.

Quantas mãos que curam temos no planeta? Quantas mãos que se unem e fazem a força? Quantas mãos que abençoam, que fazem a diferença – mesmo que por um segundo, mesmo que para uma pessoa ainda bem pequena? Há quantas mãos no mundo que criam, plantam, cultivam, dão a mão a alguém que tem medo e ajudam na travessia, desde que somos muito crianças até quando ficamos velhos? Quantas mãos servem para amaciar… Essas ferramentas incríveis que temos que fazem coisas! Tocam instrumentos, nos dão prazer, preparam alimento, dão segurança… Escrevem.

Seria uma pena não existir mais e não poder ver que os pássaros, mesmo com toda essa chuva forte, voam! Nada… Não era um voo à toa, estavam caçando! Uma chuva enorme e todos os humanos escondidos em suas tocas mas, os pássaros, caçando em bando! Seria uma pena não ouvir mais o barulho das árvores se movimentando enquanto o vento sopra durante a chuva.

Às vezes acho que esses pequenos momentos de pureza intensa redimem parcialmente o mundo. É como o antídoto secreto que limpa a energia cansada que não vemos. Quando a beleza é pura e natural assim, quando o amor é pelo real, pela união com a natureza, acho que a vida se renova. Alguém já deve ter dito isso de alguma forma, em algum lugar. Uma vez, ouvi em um momento especial que a água era o elemento mais humilde que existe; brota e viaja das maiores altitudes até os recônditos mais profundos. Nunca esqueci.

(escutando Sven Monsoon – Parte II, música ambiente)